terça-feira, 5 de junho de 2007

No limbo do processo


Há alguns anos atrás, ter acesso ao ensino superior não dependia só do mérito próprio de cada um, dependia muito das condições sócio-económicas dos indivíduos, e a esse frustrante sistema fundia-se o sistema do pensamento da sociedade, que via isso com uma pontinha de resignação e inevitabilidade. Quem quis estudar nessa altura e não pertencia ao leque dos privilegiados, viu frustradas as suas expectativas, o seu desenvolvimento pessoal, os seus sonhos. Felizmente houve alguém que ousou pensar diferente, que quis mudar esse sistema e que conseguiu mudar também o modo de pensar das pessoas.


Tirar um curso superior hoje depende mais do mérito de quem isso pretende, e eu na minha situação de estudante, sinto-me como a materialização dessa tal ousadia, dessa tal mudança de sistema e de mentalidade. Uma materialização consciente.


Dizer que o ensino superior hoje em dia, já não é para todos é uma heresia respectivamente ao que se conseguiu, mas não me surpreende. O que me surpreende é que esse processo a que se chama de Bolonha e as novas leis que legitimam o seu espírito, tenham uma tão passiva reacção por parte dos estudantes, dos professores, da sociedade em geral.


Será que ainda ninguém reparou nos preços das propinas do 2º ciclo de Bolonha? Sim, em algumas escolas chegam aos 5000 €! Pagas numa lógica mais ou menos igual ao “leve um curso pague dois”.


Paralelamente a Bolonha há todo um conjunto de acontecimentos mais ou menos subtis que pretendem declaradamente mudar o nosso pensamento de como deve ser o ensino superior e qual é a função perante a sociedade.


Há um sistema de pensamento que nos querem impor, que se tenta instalar aos poucos e poucos entrando através do sorriso de jovens bonitos impressos em brochuras de créditos de cores atraentes que nos cantam em falinhas mansas sobre como financiar os nossos cursos… Estes ataques que nascem desta convivência com a “inevitabilidade”, são dirigidos de certeza aos que mais adormecidos andam e não sentem o processo a desenrolar-se. Como é possível não sentir asco ao ver uma coisa destas!


Sinto-me temporalmente no limbo deste processo, naquele período de tempo entre o ontem e o “inevitável amanhã do processo”, mas espero não estar no limbo da mudança do pensamento social, entre o “tens direito” e o “tens direito a pagar”.


E é neste momento que me pergunto, mas “porque está isto a mudar?” Sim tem de haver uma razão, que se me lembro bem nunca foi discutida com os estudantes. Que metafísica é esta em que os estudantes não passam de meros intermediários a um fim que lhes é alheio?


Insinuações faço-as, e pergunto se essas razões não terão como base os lobbies empresariais europeus, no desejo de submeter o Ensino Superior aos ritmos, estratégias e opções do “mercado” e os estudantes à precariedade, à instabilidade e à sua arbitrariedade. Parece-me legítima esta insinuação.


E é no limbo que me relembro que os cortes do Orçamento de Estado para o ensino superior este ano já foram de 15% e que com alguma desconfiança arrisco para os próximos tempos uma diminuição sucessiva, deixando o caminho em aberto para a única solução, adivinhe-se: transformação da universidade em fundação legitimada, claro, pelo novo regime jurídico. Ou seja, a metafísica do ensino superior toma os rumos dos interesses privados.


É no limbo que vejo a tentativa de mudança de linguagem por quem está a montar o sistema: ouve-se falar em empregabilidade, em mobilidade, em flexibilidade, mas tudo isto continua a soar a precariedade quer tanto para os alunos como para os professores.


Com uma licenciatura de menor duração é mais rápida a eliminação de massa crítica das universidades (e portanto o saneamento do sistema) e mais rápida a formação de uma grande massa de licenciados fresquinhos e uniformizados à mercê de um mercado que lhe arreganha o dente, oferecendo-lhes salários mais baixos pois é maior será a procura e menor a habilitação.


E quando o sistema estiver já bem instalado, que espaço haverá para quem ousar pensar diferente? Para quem quiser estudar diferente? As bolsas para a investigação serão também privatizadas. Que rumo irá tomar a investigação? Que interesses servirá?


É por estas e por outras que Bolonha é andar para trás.

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