terça-feira, 5 de junho de 2007

O Público [é] alvo

A transitar para Bolonha, aparece o novo Regime Jurídico para as Instituições do Ensino Superior. As Escolas esclarecem os seus alunos com incertezas normalizadas. As Universidades sofrem um corte orçamental efectivo superior a 15%. “Autonomia” é o novo termo favorito. Mas a empregabilidade, a mobilidade, licenciaturas e mestrados são o alter ego da precariedade e da flexigurança no outro lado do muro.


A privatização do Ensino Superior é um cefalópode. A coroa de tentáculos está cheia de apêndices não segmentados que a alimentam e tornam possível. O mercado tem vindo a ocupar as Escolas sob variados termos. Já habituados aos patrocínios – e mesmo posse – das semanas académicas, às festas para os estudantes, aos pacotes de viagens para finalistas, à imagem mercantil do estudante trajado... é fácil não estranhar o percurso que daí é feito.


No âmbito do Estatuto Mecenato, as salas adoptaram os nomes das empresas que as remodelaram. Um detalhe pouco importante, afinal as condições melhoraram e isso é que interessa, ou talvez não. O Estado é substituído pelo pouco inocente altruísmo empresarial. A perenidade do plástico e circulação oral e inconsciente das marcas publicita-as de um modo fácil, gratuito e com direito a benefício de incentivos fiscais previstos neste Estatuto [na redução do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – IRC - e das Pessoas Singulares –IRS].


A dependência directa destas empresas não se resume à remodelação de salas, vejamos o caso dos computadores. No edifício da biblioteca, entramos no espaço da empresa que permite que os usemos, os cartazes que a publicitam e os cartões que vão aparecendo em cima dos monitores não nos deixam esquecer isso. Por outro lado, há ainda o caso dos computadores por usar de um acordo feito com uma Instituição Bancária. Mas por que não estão eles à disposição de quem precisa? A resposta é do conhecimento geral: para que este material esteja ao acesso das pessoas, terá que ocupar uma sala com condições particulares e num lugar de destaque dentro da Escola. Relembra-nos, portanto, que o altruísmo é limitado à capacidade de publicitar e de preencher a imagem que a empresa quer passar.


Estas presenças não são só espectrais, há também as que declaradamente ocupam um espaço, que é seu, dentro do espaço público: o banco que, debaixo das escadas, vende os seus serviços. A par da prática da venda do serviço está a imposição do mesmo. Um aluno para provar que estuda no ISA [entidade pública], é obrigado a ter um cartão do banco [entidade privada] sedeado na Escola. O problema é desvalorizado por não ser obrigatória a abertura de uma conta, no entanto, os dados são cedidos à instituição bancária e o cartão de estudante tem o seu logotipo. A alternativa a este cartão é simplesmente não tê-lo e andar com o papel de inscrição na carteira, já que o ISA se desresponsabilizou totalmente da atribuição do cartão de estudante.



Ultimamente temos sido acolhidos por uma campanha particularmente agressiva de um banco que disponibiliza empréstimos para pagar propinas [há pelo menos mais quatro com créditos semelhantes]. Há cartazes espalhados pelas Escolas [e não só], spots televisivos irritantemente repetidos, capas de jornais “universitários” de distribuição gratuita.


Apresentam-se como uma solução para o futuro através de um investimento na formação. Anunciam vantagens para os alunos de Escolas já em Bolonha e que tenham parcerias com o banco. Os períodos de carência vão até sete anos [os juros são pagos mensalmente] para que eventualmente se comece a pagar depois de concluído o curso. A meritocracia afaga estes créditos que determinam classes de médias escolares para as quais as taxas de juro são reduzidas. Mas se o aluno chumbar, então o crédito termina e o reembolso é automaticamente iniciado!


Não é preciso pagar uma licenciatura – pré ou pós bolonha – em marketing para saber que as campanhas publicitárias surgem em contextos específicos.


Numa altura em que surge um novo Regime Jurídico para a Instituições do Ensino Superior com um ponto no artigo da acção social que encarrega o Estado de disponibilizar empréstimos aos estudantes, cedendo à pressão dos bancos, desistindo de “estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino“* e oferecendo um rendimento extra à banca através do pagamento de uma renda acima do valor real das propinas. Numa altura em que o corte orçamental é violento e as Escolas podem definir o valor das suas propinas. Numa altura em que as Universidades se adaptam a Bolonha e as propinas para os mestrados rondam os 3500 e 4000 euros [sendo que a propina máxima para a licenciatura quase atinge os 1000€ e continuará a subir], surgem estas formas de comprar o ensino [des]democratizado.


O pagamento dos empréstimos pode ir até 14 anos e os valores mensais não são irrisórios. Saídos da Escola e inseridos no mercado de trabalho precário, as dívidas são grandes antes de se auferir de qualquer remuneração [seria bom olharmos para alguns exemplos nos Estados Unidos]. A vida é hipotecada, mas tirou-se um curso superior.


De Universidades a Fundações, o que muda não é só o nome. De bolsas de estudo a empréstimos, quem é que pode estudar? Direccionar o ensino para o mercado de trabalho, quem manda no conhecimento? O que queremos da Escola pública? O que entendemos por direito ao ensino? O caminho não pode ser este.


* in Constituição da República Portuguesa, Capítulo III, Artigo 74º.

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